Resenha: A Lei do Capital em “Diante da Lei” de Franz Kafka
- Ricardo Costa
- 9 de fev.
- 3 min de leitura
“Diante da lei”, conto escrito por Franz Kafka, faz parte da obra “O processo”, publicado em 1925, após sua morte. Foi escrito entre 1914-15. Sua mensagem pode ser vista como um protesto que ecoa dos escombros deixados para trás face os avanços dos novos processos produtivos e burocráticos no interior da sociedade capitalista e o consequente estranhamento do homem diante desse novo mundo hostil hiper-administrado que se anuncia. Mundo este que está a produzir a maior catástrofe humanitária já vista pela humanidade: A Primeira Grande Guerra Mundial. É diante deste cenário, já previamente anunciado ( como previu Engels ainda no século XIX) onde mais de 20 milhões de vidas (uma grande parte de camponeses, como o próprio personagem do conto) foram ceifadas em prol da partilha dos mercados e das colônias pelas nações centrais imperialistas, que Kafka redige seu grito.
O conto começa com um camponês chegando à porta da Lei, onde um porteiro controla o acesso. O camponês pergunta se pode entrar e recebe uma negativa. Após refletir, pergunta se poderá entrar mais tarde, e o porteiro responde que "é possível, mas não agora." A porta permanece aberta, e o camponês, curioso, tenta espionar, mas o porteiro avisa que existem outros porteiros, cada um mais poderoso do que o outro. O camponês decide esperar pela permissão e, após ganhar um banco, ali espera durante longos anos, vendo suas todas suas tentativas falharem. Ele oferece subornos, aceitos pelo porteiro, mas sem efeito. O camponês acaba envelhecendo, começa a perder a visão e a audição e, no fim da vida, faz uma última pergunta ao porteiro: “Todos aspiram à lei. Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar ?” Ao passo que o porteiro lhe responde, percebendo que o pobre camponês já está no fim da vida: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”
Um dos elementos mais candentes da obra de Kafka é certamente o caráter de impessoalidade presente nas relações entre seus personagens e o mundo que os rodeia. O homem que foge do trabalho e se tranca no quarto percebendo-se um inseto ( A Metamorfose) ou o lugar onde se aplicam penas aos seus residentes sem estes saberem o motivo ( A colônia penal) são imagens de um mundo onde a criação se volta contra seus criadores. Se nas épocas passadas a vida das classes dominadas não possuíam tanto valor diante de seus senhores, é no capitalismo que isso se intensifica exponencialmente.
Marx, em sua crítica da economia política burguesa, introduz um conceito chave para entendermos o novo modo de produção que toma conta de todo o globo depois da Revolução Industrial: O “fetichismo da mercadoria”. Em um mundo onde a maioria da população perdeu seu acesso aos meios de produção, resta apenas a venda da própria força de trabalho como forma de continuar existindo. A realidade humana passa a girar em torno de um processo geral indiferente às necessidades dos indivíduos que não seja a própria reprodução biológica.
A criação e a transformação da realidade social passa a ser norteada pela acumulação e a busca pelo lucro. Neste novo cenário, diz Marx, onde seus criadores não se apropriam de suas criações, “a relação entre pessoas assume o caráter de uma relação entre coisas” ( MARX, 2011). A lei que o camponês tanto anseia pode ser vista como o lugar que possui uma infinidade de portas, onde “de sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro”, isto é, o mundo dos capitalistas, uma pirâmide interminável e crescentemente hostil.
Afinal, não foram os camponeses as primeiras vítimas diretas do processo de constituição do capitalismo quando dos “cercamentos” na Inglaterra ? A Lei especialmente feita para ele, a lei do capital, a qual ele deve se submeter, como revela o porteiro ao final do conto, paradoxalmente, não pode ser acessada, pois a existência do camponês é, em última instância, um entrave para o desenvolvimento capitalista. Ele está à margem do processo; ao mesmo tempo em que sucumbe a ela em sua espera interminável por ascensão.
A potência de Kafka reside nessa capacidade de criar acontecimentos fictícios que fazem “irradiar alguma coisa para além deles mesmos, de modo que um vulgar episódio [...] se converta num resumo implacável de uma certa condição humana ou no símbolo candente de uma ordem social ou histórica” ² ( CORTÁZAR, 2006, 152-153). Sua narrativa parece não indicar um ponto de fuga, mas talvez nos alerte e nos impila a fazermos a pergunta: “Onde e como estão hoje os camponeses ?”

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