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Resenha: A Lei do Capital em “Diante da Lei” de Franz Kafka


“Diante da lei”, conto escrito por Franz Kafka, faz parte da obra “O processo”,  publicado em 1925, após sua morte. Foi escrito entre 1914-15. Sua mensagem pode ser vista como um protesto que ecoa dos escombros deixados para trás face os avanços dos novos processos produtivos e burocráticos no interior da sociedade capitalista e o consequente estranhamento do homem diante desse novo mundo hostil hiper-administrado que se anuncia. Mundo este que está a produzir a maior catástrofe humanitária já vista pela humanidade: A Primeira Grande Guerra Mundial. É diante deste cenário, já previamente anunciado ( como previu Engels ainda no século XIX) onde mais de 20 milhões de vidas (uma grande parte de camponeses, como o próprio personagem do conto) foram ceifadas em prol da partilha dos mercados e das colônias pelas nações centrais imperialistas, que Kafka redige seu grito.


O conto começa com um camponês chegando à porta da Lei, onde um porteiro controla o acesso. O camponês pergunta se pode entrar e recebe uma negativa. Após refletir, pergunta se poderá entrar mais tarde, e o porteiro responde que "é possível, mas não agora." A porta permanece aberta, e o camponês, curioso, tenta espionar, mas o porteiro avisa que existem outros porteiros, cada um mais poderoso do que o outro. O camponês decide esperar pela permissão e, após ganhar um banco, ali espera durante longos anos, vendo suas todas suas tentativas falharem. Ele oferece subornos, aceitos pelo porteiro, mas sem efeito. O camponês acaba envelhecendo, começa a perder a visão e a audição e, no fim da vida, faz uma última pergunta ao porteiro: “Todos aspiram à lei. Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar ?” Ao passo que o porteiro lhe responde, percebendo que o pobre camponês já está no fim da vida: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”


Um dos elementos mais candentes da obra de Kafka é certamente o caráter de impessoalidade presente nas relações entre seus personagens e o mundo que os rodeia. O homem que foge do trabalho e se tranca no quarto percebendo-se um inseto ( A Metamorfose) ou o lugar onde se aplicam penas aos seus residentes sem estes saberem o motivo ( A colônia penal) são imagens de um mundo onde a criação se volta contra seus criadores. Se nas épocas passadas a vida das classes dominadas não possuíam tanto valor diante de seus senhores, é no capitalismo que isso se intensifica exponencialmente.


Marx, em sua crítica da economia política burguesa, introduz um conceito chave para entendermos o novo modo de produção que toma conta de todo o globo depois da Revolução Industrial: O “fetichismo da mercadoria”. Em um mundo onde a maioria da população perdeu seu acesso aos meios de produção, resta apenas a venda da própria força de trabalho como forma de continuar existindo. A realidade humana passa a girar em torno de um processo geral indiferente às necessidades dos indivíduos que não seja a própria reprodução biológica. 


A criação e a transformação da realidade social passa a ser norteada pela acumulação e a busca pelo lucro. Neste novo cenário, diz Marx, onde seus criadores não se apropriam de suas criações, “a relação entre pessoas assume o caráter de uma relação entre coisas” ( MARX, 2011). A lei que o camponês tanto anseia pode ser vista como o lugar que possui uma infinidade de portas, onde “de sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro”, isto é, o mundo dos capitalistas, uma pirâmide interminável e crescentemente hostil. 


Afinal, não foram os camponeses as primeiras vítimas diretas do processo de constituição do capitalismo quando dos “cercamentos” na Inglaterra ? A Lei especialmente feita para ele, a lei do capital, a qual ele deve se submeter, como revela o porteiro ao final do conto, paradoxalmente, não pode ser acessada, pois a existência do camponês é, em última instância, um entrave para o desenvolvimento capitalista. Ele está à margem do processo; ao mesmo tempo em que sucumbe a ela em sua espera interminável por ascensão. 


A potência de Kafka reside nessa capacidade de criar acontecimentos fictícios que fazem “irradiar alguma coisa para além deles mesmos, de modo que um vulgar episódio [...] se converta num resumo implacável de uma certa condição humana ou no símbolo candente de uma ordem social ou histórica” ² ( CORTÁZAR, 2006, 152-153). Sua narrativa parece não indicar um ponto de fuga, mas talvez nos alerte e nos impila a fazermos a pergunta: “Onde e como estão hoje os camponeses ?”




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